“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
6. Aqui vemos a suprema evidência do amor de Cristo por nós.
“Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a sua vida
pelos seus amigos” (Jo 15.13). Mas a grandeza do amor de Cristo pode ser
estimada somente quando estamos aptos a mensurar o que estava envolvido nesse
“dar” a sua vida. Como vimos,
significava muito mais do que a morte física, mesmo que essa fosse de
indizível vergonha, e indescritível sofrimento. Significava que ele tinha de
tomar o nosso lugar e ser feito “pecado” por nós, e o que isso envolvia só pode
ser julgado à luz de sua pessoa.
Imagine uma mulher perfeitamente honrada e
virtuosa forçada a suportar, por algum tempo, a associação com o que há de mais
vil e impuro. Imagine-a encerrada num antro de iniquidade, rodeada pelos mais grosseiros
dentre os homens e as mulheres, e sem nenhum meio de escape. Você pode avaliar
sua repulsa às blasfêmias de suas bocas sujas, à farra de embriaguez, à
obscenidade dos arredores?
Você pode formar uma opinião do que uma mulher pura sofreria
em sua alma em meio a tal impureza? Mas a ilustração é, de longe, falha, pois
não há nenhuma mulher absolutamente pura. Honrada, virtuosa, moralmente pura,
sim, porém, pura no sentido de ser sem pecado, espiritualmente pura, não. Mas
Cristo era puro; absolutamente puro. Ele era o Santo. Ele tinha uma infinita
aversão ao pecado. Ele o aborrecia. Sua alma santa se esquivava dele. Mas, na
cruz, nossas iniquidades foram todas postas sobre ele, e o pecado — essa coisa
vil — envolvia-se em torno dele como uma horrível serpente enrolada. E,
contudo, ele de bom grado sofreu por nós! Por quê? Porque nos amou: “Como havia
amado os seus, que estavam no mundo, amou-os até ao fim” (Jo 13.1).
Mas mais ainda: a grandeza do amor de Cristo por
nós pode ser avaliada apenas quando somos capazes de medir a ira divina que foi
derramada sobre ele. Era disso que sua alma se esquivava. O que isso significou
para ele, o que custou a ele, pode se saber em parte por um minucioso exame dos
salmos nos quais se nos permite ouvir algo de seus patéticos solilóquios e
petições a Deus. Falando com antecipação, o próprio Senhor Jesus pelo Espírito
clamou através de Davi:
“Livra-me, ó Deus, pois as águas entraram até à minha alma.
Atolei-me em profundo lamaçal, onde se não pode estar em pé; entrei na
profundeza das águas, onde a corrente me leva. Estou cansado de clamar;
secou-se-me a garganta; os meus olhos desfalecem esperando o meu Deus. Tira-me do lamaçal, e não me deixes atolar;
seja eu livre dos que me aborrecem, e das profundezas das águas. Não me leve a
corrente das águas e não me sorva o abismo, nem o poço cerre a sua boca sobre
mim. E não escondas o teu rosto do teu
servo, porque estou angustiado; ouve-me depressa. Aproxima-te da minha alma, e
resgata-a; livra-me por causa dos meus inimigos. Bem conheces a minha afronta,
e a minha vergonha, e a minha confusão; diante de ti estão todos os meus
adversários. Afrontas me quebrantaram o coração, e estou fraquíssimo. Esperei
por alguém que tivesse compaixão, mas não houve nenhum; e por consoladores, mas
não os achei” (Sl 69.1-3, 14, 15, 17-20).
E outra vez: “Um abismo chama outro abismo, ao ruído das tuas
catadupas; todas as tuas ondas e vagas têm passado sobre mim” (Sl 42.7). A
aversão divina ao pecado sobreveio impetuosa e rebentou sobre o Portador do
Pecado. Aguardando de modo expectante a terrível angústia da cruz, ele clamou
através de Jeremias: “Não vos comove isto a todos vós que passais pelo caminho?
Atendei, e vede, se há dor como a minha dor, que veio sobre mim, com que me
entristeceu o Senhor, no dia do furor da sua ira” (Lm 1.12).
Essas são algumas
das passagens que nos sugerem e pelas quais podemos julgar o indizível horror
com que o Santo contemplava aquelas três horas na cruz, horas nas quais estava
condensado o equivalente a uma eternidade no inferno. O amado do Pai deve ter a
luz da face de Deus ocultada dele; ele deve ser deixado sozinho nas trevas
exteriores. Aqui tinha amor incomparável e imensurável. “Se queres, passa de
mim este cálice”, ele clamou. Mas não era possível que seu povo fosse salvo a
menos que ele bebesse até a última gota daquele copo de desgraça e ira; e,
porque não havia nenhum outro que podia bebê-lo, ele o fez. Bendito seja seu
nome! Onde o pecado havia trazido o homem, o amor trouxe o Salvador.